Em 2008 o MEC convocou uma Conferência Nacional de
Educação – Conae para se realizar em 2010 tendo como tema central a
construção do Sistema Nacional de Educação. A Conae foi proposta como
uma série a realizar-se de quatro em quatro anos. Daí, a previsão da
realização da 2ª Conae em 2014.
Por Dermeval Saviani*, especial para o Vermelho
Considerando que a Conae 2010 se realizou no momento em que se
esgotava o prazo de vigência do Plano Nacional de Educação, este foi
também incorporado resultando, daí, que a 1ª Conae pautou-se por esses
dois grandes temas: Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de
Educação.
De fato, a Conferência se constituiu numa enorme mobilização tendo
contado com quase 4.000 participantes. Foram aprovadas na Plenária Final
677 propostas variando desde as “cotas raciais para ingresso nas
universidades públicas” até os 10% do PIB para o financiamento da
educação. No entanto, em relação aos dois temas centrais os resultados
não foram animadores.
No que se refere ao Sistema Nacional de Educação estamos ainda
marcando passo. É verdade que praticamente se removeu o obstáculo legal,
sempre justificado por um suposto impedimento constitucional. Com a
Emenda 59, de 2009, a expressão “sistema nacional de educação” passou a
figurar na Constituição com a determinação de sua instituição por lei
específica. Mas é preciso reiterar que essa questão não encontrou,
ainda, um encaminhamento adequado.
No que se refere ao Plano Nacional de Educação, a Conae teria tido um
impacto mais direto, uma vez que no final do ano de sua realização o
governo enviou ao Congresso Nacional o projeto de PNE. Entretanto, esse
projeto, que de certo modo frustrou as expectativas alimentadas com a
Conae, foi aperfeiçoado pela Câmara dos Deputados, mas depois modificado
para pior no Senado e, por ter sido alterado, teve de retornar à
Câmara, o que ocorreu em 31 de dezembro de 2013. Isto significa que, se a
2ª Conae tivesse sido realizada em fevereiro de 2014, como estava
previsto, os principais debates iriam girar em torno das medidas a serem
tomadas para reverter o retrocesso ocorrido no Senado. No entanto, à
última hora, o MEC transferiu sua realização para novembro. Com isso,
ela irá acontecer nos próximos dias 19 a 23 deste mês, com o Plano
Nacional de Educação já aprovado.
Consequentemente, o que cabe esperar desta II Conferência Nacional de
Educação é uma forte retomada do foco na educação pública, cuja
qualidade só pode ser assegurada pela instituição de um sólido sistema
nacional de educação. No entanto, o tema central da II Conae já foi
enunciado de forma imprópria, pois assim está formulado: “O PNE na
Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular,
Cooperação Federativa e Regime de Colaboração”.
Ora, não é do plano que deriva o sistema; ao contrário, é sobre este
que o plano se apoia. E, obviamente, não cabe ao plano articular o
sistema, pois a articulação é um atributo inerente ao sistema. E os sete
eixos em que se desdobra o tema central da Conae tratam de diferentes
assuntos parecendo supor um entendimento satisfatório do significado do
Sistema Nacional de Educação sobre o qual, entretanto, paira um
desconhecimento mais ou menos generalizado. Assim, o que deve nortear o
debate da Conae 2014 é a busca de maior clareza sobre o significado
daquilo que queremos instituir avançando na compreensão da base de
sustentação, da forma de organização e do conteúdo do Sistema Nacional
de Educação. No “Cap. IV – Indicações para a construção do Sistema
Nacional de Educação” do livro Sistema Nacional de Educação e Plano
Nacional de Educação, que publiquei neste ano, desenvolvo esses aspectos
que apresentarei sinteticamente nos itens seguintes deste artigo.
1. Por que é importante implantar o Sistema Nacional de Educação no Brasil?
A organização dos sistemas nacionais de ensino foi a forma que, a
partir da segunda metade do século 19, os principais países encontraram
para assegurar a todos os seus habitantes a instrução pública na forma
do ensino elementar que, uma vez universalizado, permitiu-lhes eliminar o
analfabetismo. Por meio de um sistema nacional foi possível garantir a
toda a população uma educação com o mesmo padrão de qualidade
permitindo, a cada cidadão, o acesso aos conhecimentos sistematizados
representados pelo domínio do idioma nacional na sua forma escrita
acrescido das noções elementares de aritmética e das ciências da
natureza e da sociedade. Para ilustrar esse fato podemos considerar o
caso da Itália.
Quando de sua unificação, em 1861, a Itália adotou uma lei geral de
educação que manteve o ensino primário sob a responsabilidade dos
municípios, aos quais cabia a manutenção das escolas e a admissão e
pagamento dos professores, o que determinou um atraso considerável do
ensino, à vista das grandes deficiências locais. Com esse tratamento
dado à instrução popular a Itália chegou ao final do século 19 com
metade de sua população analfabeta, numa situação semelhante à do Brasil
na mesma época.
Mas ao longo do final do século 19 desenvolveu-se uma intensa
campanha para colocar o ensino primário a cargo do governo central. A
mobilização contou, inclusive, com o martírio da jovem professora cujo
nome, emblematicamente, era Itália Donati que, vítima do mandonismo
local, de assédio moral e sexual e da maledicência, encontrou no
suicídio a recuperação de sua honra. Sua morte, em 1886, provocou grande
comoção. O jornal “Corriere della Sera”, de Milão, denunciando as
perseguições sofridas pelas professoras por parte da política local,
liderou o movimento que em 1911 resultou na aprovação da reforma que
colocou o ensino primário sob a responsabilidade do Estado Nacional,
instalando-se o sistema nacional de ensino a partir do qual foi possível
erradicar o analfabetismo.
Esse exemplo da Itália mostra a improcedência dos argumentos que, em
nome da necessidade de se preservar as especificidades locais, se
posicionam contra a instalação de um sistema nacional de educação no
Brasil. A experiência italiana mostra o inverso. Diante da diversidade
das situações locais, a organização do sistema nacional de ensino tornou
possível a toda a população do país o acesso às formas de expressão
escrita além de permitir, pelo aprendizado de uma língua comum, a
comunicação entre todos os didadãos do país, antes separados por
dialetos incompreensíveis entre si.
O caso italiano indica que a melhor forma de fortalecer as instâncias
locais não é conferir-lhes autonomia deixando-as à própria sorte. A
melhor maneira de respeitar a diversidade local é pela sua articulação
no todo. O isolamento tende a fazer degenerar a diversidade em
desigualdade, cristalizando-a pela manutenção das deficiências locais.
Inversamente, articuladas no sistema, enseja-se a possibilidade de fazer
reverter as deficiências, resultando no fortalecimento das diversidades
em benefício de todo o sistema.
Por não ter até agora organizado seu Sistema Nacional de Educação o
Brasil foi se atrasando e até hoje não eliminou o analfabetismo,
problema que os principais países, incluídos nossos vizinhos Uruguai,
Argentina e Chile, resolveram no final do século 19 instalando os
respectivos sistemas nacionais.
2. Caráter federativo, unitário e público do Sistema Nacional de Educação
Contrariamente ao argumento de que a adoção do regime federativo seria
um fator impeditivo da instituição de um sistema nacional de educação no
Brasil, afirmo que a forma própria de se responder adequadamente às
necessidades educacionais de um país organizado sob o regime federativo é
exatamente por meio da organização de um sistema nacional de educação.
Isso porque, sendo a federação a unidade de vários estados que,
preservando suas respectivas identidades, intencionalmente se articulam
tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns, a federação
postula o sistema nacional que, no campo da educação, representa a união
intencional dos vários serviços educacionais que se desenvolvem no
âmbito territorial dos diversos entes federativos que compõem o Estado
federado nacional.
Se o sistema pode ser definido como a unidade de vários elementos
intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente e
operante, segue-se que o sistema nacional de educação é a unidade dos
vários aspectos ou serviços educacionais mobilizados por determinado
país, intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente
que opera eficazmente no processo de educação da população do referido
país.
Vê-se, então, que se trata de unidade da variedade e não unidade da
identidade. Portanto, contrariamente ao que por vezes se propaga,
sistema não é uma unidade monolítica, indiferenciada, mas unidade da
diversidade, um todo que articula uma variedade de elementos que, ao se
integrarem ao todo nem por isso perdem a própria identidade; ao
contrário, participam do todo, integram o sistema na forma de suas
respectivas especificidades. Isso significa que uma unidade monolítica é
tão avessa à ideia de sistema como uma multiplicidade desarticulada.
Em suma, trata-se de construir um verdadeiro sistema nacional de
educação, isto é, um conjunto unificado que articula todos os aspectos
da educação no país inteiro, com normas comuns válidas para todo o
território nacional e com procedimentos também comuns visando a
assegurar educação com o mesmo padrão de qualidade a toda a população do
país.
O que cabe fazer é instituir um sistema nacional em sentido próprio,
que não dependa das adesões autônomas e “a posteriori” de estados e
municípios. Sua adesão ao sistema nacional deve decorrer da participação
efetiva na sua construção. E não vale invocar a cláusula pétrea da
Constituição referente à forma federativa de Estado com a consequente
autonomia dos entes federados. Isso porque o sistema nacional de
educação não é do governo federal, mas é da Federação, portanto, dos
próprios entes federados que o constroem conjuntamente e participam,
também em conjunto, de sua gestão.
Esse sistema, além de ser único, só pode ser público, pois o sistema
se caracteriza por autonomia normativa e só o Estado tem legitimidade
para baixar normas que obrigam a todos. Portanto, não há que transigir
com os direitos de educar dos particulares trate-se das famílias, de
associações, congregações religiosas, empresas ou outros tipos de
entidades, enaltecendo-se a importância de sua contribuição. As
instituições privadas, em suas diferentes modalidades, integrarão o
sistema precisamente como particulares e é nessa condição que darão sua
contribuição específica para o desenvolvimento da educação brasileira.
Deve-se entender que quanto mais autenticamente particulares elas forem,
melhor se tipifica sua contribuição própria. Portanto, não cabe
travesti-las de públicas seja pela transferência de recursos na forma de
subsídios e isenções, seja pela transferência de poder admitindo-as na
gestão e operação do complexo das instituições públicas que integram o
sistema.
3. A organização funcional do Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração
Na construção do sistema nacional de educação deve-se implantar uma
arquitetônica a partir do regime de colaboração entre a União, os
estados, o Distrito Federal e os municípios. É preciso quebrar a lógica
atual hierarquizada que coloca cada nível de ensino sob a
responsabilidade de cada instância federativa em sentido ascendente: os
municípios com a educação infantil e o ensino fundamental, os estados
com o ensino fundamental e o ensino médio e a União com as escolas
técnicas e o ensino superior. Em lugar dessa responsabilização
verticalizada, cabe fazer uma distribuição horizontal na qual cada ente
federativo assume, em relação ao sistema como um todo, responsabilidades
consentâneas com suas capacidades.
Nessa nova repartição os entes federativos concorrerão na medida de
suas competências específicas. Assim, as normas básicas que regularão o
sistema serão de responsabilidade da União, consubstanciadas na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação,
especificadas pelas medidas do Conselho Nacional de Educação. Os
Estados e o Distrito Federal poderão expedir legislação complementar,
adequando as normas gerais às particularidades regionais.
O financiamento do sistema será compartilhado pelas três instâncias,
conforme o regime dos fundos. Assim, além do Fundeb cabe criar um Fundo
de Manutenção da Educação Superior (Fundes). Se no caso do Fundeb a
maioria dos recursos provém de estados e municípios cabendo à União um
papel complementar, em relação ao Fundes a responsabilidade da União
será dominante, entrando os estados em caráter complementar.
A formação de professores, a definição da carreira e condições de
exercício não podem ser confiadas aos municípios. A própria LDB, pelo
inciso V do artigo 11, os impede de atuar na formação de professores uma
vez que poderão se dedicar a outros níveis de ensino além do
fundamental “somente quando estiverem atendidas plenamente as
necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos
percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e
desenvolvimento do ensino”. Dado que a formação de professores ocorre,
como regra, no nível superior e, transitoriamente, no nível médio,
escapa aos municípios essa atribuição. Logo, as questões relativas ao
magistério constituem matéria de responsabilidade compartilhada entre
União e estados.
A responsabilidade principal dos municípios incidirá sobre a
construção e conservação dos prédios escolares e sobre a inspeção de
suas condições de funcionamento, além dos serviços de apoio como
merenda, transporte etc. De fato, os municípios estão equipados para
regular a ocupação e uso do solo. Quer se trate de moradias, de
hospitais, de restaurantes, de igrejas e também das escolas o órgão
municipal verifica se o projeto atende às características do tipo de
construção à luz da finalidade que lhe caberá cumprir.
Em suma, o sistema nacional de educação integra todos os níveis e
modalidades de educação com os recursos e serviços correspondentes
organizados e geridos, em regime de colaboração, por todos os entes
federativos. A repartição das atribuições não implica a exclusão da
participação dos entes aos quais não cabe a responsabilidade direta pelo
cumprimento daquela função. Eles participarão por meio de seus
colegiados apresentando subsídios que venham a tornar mais qualificadas
as decisões. E assumirão responsabilidades diretas nos aspectos que lhes
correspondem por meio das Secretarias e Conselhos Estaduais e
Municipais de Educação concorrendo para a maior eficácia da operação do
sistema sem prejuízo do comum padrão de qualidade que caracteriza o
Sistema Nacional de Educação.
4. A concepção orientadora do conteúdo do trabalho pedagógico no Sistema Nacional de Educação
Na estrutura curricular dos vários níveis de ensino a concepção que
deve orientar o conteúdo do trabalho pedagógico no conjunto do sistema
deverá ter como referência a forma de organização da sociedade atual.
Isso significa que se deve abrir a caixa preta da chamada “sociedade do
conhecimento”. Na verdade, a denominação “sociedade do conhecimento” não
é apropriada para caracterizar a época atual. Melhor seria falar-se em
“sociedade da informação”. Isso porque conhecimento implica a capacidade
de compreender as conexões entre os fenômenos, captar o significado das
coisas, do mundo em que vivemos. E hoje parece que quanto mais
informações circulam de forma fragmentada pelos mais diferentes veículos
de comunicação, mais difícil se torna o acesso ao conhecimento que nos
permitiria compreender o significado da situação em que vivemos. Essa
forma de sociedade apresenta-se como uma verdadeira caixa preta cujo
conteúdo nos escapa inteiramente. Por isso digo que é necessário abrir a
caixa preta da “sociedade da informação”. E isso só pode ser feito pelo
trabalho pedagógico realizado sistematicamente nas escolas. É dessa
forma que, diante do imenso mundo de informações que se abre a um
simples clik no computador, os jovens poderão distinguir entre aquelas
que são relevantes e irrelevantes, as que são verdadeiras e as que são
falsas. Para isso a educação a ser ministrada deverá garantir a todos o
acesso aos fundamentos e pressupostos que tornaram possível a revolução
microeletrônica que está na base tanto dos mecanismos de automação que
operam no processo produtivo como das tecnologias da informação que se
movem nos ambientes virtuais da comunicação eletrônica.
Assim, além de tornar acessíveis os computadores pela disseminação
dos aparelhos e em vez de lançar a educação na esfera dos cursos a
distância de forma açodada, é preciso garantir não apenas o domínio
técnico-operativo dessas tecnologias, mas a compreensão dos princípios
científicos e dos processos que as tornaram possíveis. Se continuarmos
pelos caminhos que estamos trilhando, não parece exagerado considerar
que estão se realizando aquelas profecias dos textos de ficção
científica que previram uma humanidade submetida ao jugo de suas
próprias criaturas, sendo dirigidas por máquinas engrenadas em processos
automáticos. Pois não deixa de ser verdade que, cada vez mais, nos
relacionamos com as máquinas eletrônicas, especificamente com os
computadores, considerando-os fetichisticamente como pessoas a cujos
desígnios nós nos sujeitamos; e, sem conseguirmos compreendê-los,
atribuímos a eles determinadas características psicológicas traduzidas
em expressões que os técnicos utilizam para nos explicar seu
comportamento, tais como: ele, o computador, não reagiu bem ao seu
procedimento; ele é assim mesmo, às vezes aceita o que você propõe e às
vezes não aceita; etc.
Nas condições atuais não é mais suficiente alertar contra os perigos
da racionalidade técnica advogando-se uma formação centrada numa cultura
de base humanística voltada para a filosofia, literatura, artes e
ciências humanas à revelia do desenvolvimento das chamadas “ciências
duras”. É preciso operar um giro da formação na direção de uma cultura
de base científica que articule, de forma unificada, num complexo
compreensivo, as ciências humano-naturais que estão modificando
profundamente as formas de vida, passando-as pelo crivo da reflexão
filosófica e da expressão artística e literária. É este o desafio que o
Sistema Nacional de Educação terá de enfrentar. Somente assim será
possível, além de qualificar para o trabalho, promover igualmente o
pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da
cidadania.
5. A organização pedagógica do Sistema Nacional de Educação
Sobre a organização pedagógica proponho que se tome como referência o
conceito do trabalho como princípio educativo que compreende três
significados. Ou seja, o trabalho é princípio educativo na medida em
que: a) determina, pelo grau de desenvolvimento social atingido
historicamente, o modo de ser da educação em seu conjunto. Nesse
sentido, aos modos de produção correspondem modos distintos de educar
com uma correspondente forma dominante de educação; b) coloca exigências
específicas que o processo educativo deve preencher, em vista da
participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente
produtivo; c) determina a educação como modalidade específica e
diferenciada de trabalho: o trabalho pedagógico. É este significado que
está na base da concepção orientadora do trabalho pedagógico apresentada
no item anterior.
Considerando o primeiro sentido, vemos que o modo como está
organizada a sociedade atual é a referência para a organização do ensino
fundamental. O nível de desenvolvimento atingido pela sociedade
contemporânea coloca a exigência de um acervo mínimo de conhecimentos
sistemáticos que inclui a linguagem escrita e a matemática, já
incorporadas na vida da sociedade atual; as ciências naturais, cujos
elementos básicos relativos ao conhecimento das leis que regem a
natureza são necessários para se compreender as transformações operadas
pela ação do homem sobre o meio ambiente; e as ciências sociais, pelas
quais se pode compreender as relações entre os homens, as formas como
eles se organizam, as instituições que criam e as regras de convivência
que estabelecem, com a consequente definição de direitos e deveres. O
último componente (ciências sociais) corresponde, na atual estrutura,
aos conteúdos de história e geografia. Uma vez que o princípio do
trabalho é imanente à escola elementar, no ensino fundamental a relação
entre trabalho e educação é implícita e indireta. A escola elementar não
precisa, então, fazer referência direta ao processo de trabalho.
Se no ensino fundamental a relação é implícita e indireta, no ensino
médio a relação entre educação e trabalho deverá ser tratada de maneira
explícita e direta. Intervém aqui o segundo sentido do conceito de
trabalho como princípio educativo. Ao ensino médio cabe explicitar como o
conhecimento (objeto específico do processo de ensino), isto é, como a
ciência, potência espiritual, se converte em potência material no
processo de produção. Tal explicitação deve envolver o domínio não
apenas teórico, mas também prático sobre o modo como o saber se articula
com o processo produtivo.
O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio se expressa
no conceito de politecnia entendido como o domínio dos fundamentos
científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna. Esta
é uma concepção radicalmente diferente da que propõe um ensino médio
profissionalizante que entende a profissionalização como um adestramento
em uma determinada habilidade sem o conhecimento de seus fundamentos e
de sua articulação com o conjunto do processo produtivo. Também é
diversa da polivalência tal como aparece no toyotismo com o objetivo de
ajustar os trabalhadores à produção flexível.
Finalmente, à educação superior cabe a tarefa de organizar a cultura
superior como forma de possibilitar que participem plenamente da vida
cultural, em sua manifestação mais elaborada, todos os membros da
sociedade independentemente do tipo de atividade profissional a que se
dediquem.
Assim, além do ensino superior destinado a formar profissionais de nível
universitário (a imensa gama de profissionais liberais e de cientistas e
tecnólogos de diferentes matizes), formula-se a exigência da
organização da cultura superior com o objetivo de possibilitar a toda a
população a difusão e discussão dos grandes problemas que afetam o homem
contemporâneo. Trata-se de uma proposta bem diversa da atual função da
extensão universitária. Não se trata de estender à população
trabalhadora, enquanto receptora passiva, algo próprio da atividade
universitária. Trata-se, antes, de evitar que os trabalhadores caiam na
passividade intelectual, evitando-se, ao mesmo tempo, que os
universitários caiam no academicismo.
6. Conclusão: desafios e perspectivas da construção do Sistema Nacional de Educação no Brasil
Levando em conta as considerações que fiz nos artigos anteriores
impõe-se a conclusão de que não cabe entender o Sistema Nacional de
Educação como um grande guarda-chuva com a mera função de abrigar 26
sistemas estaduais de ensino, o do Distrito Federal, o próprio sistema
federal e, no limite, 5.570 sistemas municipais de ensino, supostamente
autônomos entre si. Se for aprovada uma proposta nesses termos, o
Sistema Nacional de Educação se reduzirá a uma mera formalidade
mantendo-se o quadro de hoje com todas as contradições, desencontros,
imprecisões e improvisações que marcam a situação atual, avessa às
exigências da organização da educação na forma de um sistema nacional.
Diferentemente dessa função meramente articuladora dos sistemas de
ensino já existentes só faz sentido lutar pela construção e implantação
do Sistema Nacional de Educação se se tratar de um sistema unificado,
plenamente público, organizado e gerido por todos os entes federativos,
sob coordenação da União.
Mas não será fácil seguir esse caminho. Contra o sistema nacional
unificado prevalece seu entendimento como simples cobertura para a
variedade dos ditos sistemas municipais e estaduais; contra o sistema
público milita a força do privado com os mecanismos de mercado
contaminando crescentemente a própria esfera pública. É assim que o
movimento dos empresários vem ocupando espaços nas redes públicas via
Undime e Consed, nos Conselhos de Educação e no próprio aparelho de
Estado, como o ilustram as ações do Movimento “Todos pela Educação”. É
assim também que grande parte das redes públicas, em especial as
municipais, vem dispensando os livros didáticos distribuídos
gratui¬tamente pelo MEC e adquirindo os ditos “sistemas de ensino” como
“Sistema COC”, “Sistema Objetivo”, “Sistema Positivo”, “Sistema Uno”,
“Sistema Anglo” etc. com o argumento de que tais “sistemas” lhes
permitem aumentar um pontinho nas avaliações do Ideb, o que até se
entende: esses autodenominados “sistemas” têm know-how em adestrar para a
realização de provas, pois surgiram a partir dos Cursos
Pré-Vestibulares que visavam treinar para passar nos exames de ingresso
no ensino superior. É assim, ainda, que os recursos públicos da
edu¬cação vêm sendo utilizados para convênios com entidades privadas, em
especial no caso das creches, mas estendendo-se também a outras
iniciativas, como o ilustram os casos recentes de parceria com o
Instituto Airton Senna para avaliação em larga escala de habilidades
sócio emocionais ou não cognitivas de crianças e jovens, oportunamente
contestada em carta aberta da ANPEd; e a parceria entre a Capes e a Vale
para a promoção do “Prêmio Vale-Capes de Ciência e Sustentabilidade”,
que vem sendo contestado pelo Movimento “Articulação Internacional dos
Atingidos pela Vale”.
É necessário, enfim, um amplo movimento dos educadores tanto na Conae
como em outros espaços visando aprovar, de forma insofismável, a
implantação de um verdadeiro Sistema Nacional de Educação, isto é, um
sistema unificado, organizado e gerido, em regime de colaboração, pelos
entes federativos sob coordenação da União, convertendo os atuais
sistemas municipais e estaduais em redes públicas integrantes do sistema
nacional; um sistema verdadeiramente público, livre das pressões de
mercado e da promiscuidade com as organizações privadas, no qual a rede
das escolas particulares seja integrada pela sua adequação às normas
estabelecidas no interesse maior da educação destinada a toda a
população brasileira. E que os órgãos públicos do campo educacional, a
começar pelo Ministério da Educação, Inep, Capes e Conselho Nacional de
Educação, acolham e implementem em plenitude essa proposta.
Fontes: Este texto foi composto pela articulação de seis artigos
encaminhados para publicação no Semanário “A Fonte”, de São Sepé – RS,
entre os dias 15/11 e 27/12/2014.
*Professor Emérito da Unicamp, Pesquisador Emérito do CNPq
e Professor Titular Colaborador Pleno do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Unicamp.
Do Portal Vermelho